quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Lima Barreto - Leitura de Jornais

Em tempos de euforia gerada pelos eventos vindouros (Copa do Mundo, Olimpíadas), a racionalização dos gastos é ignorada. Que outra finalidade pode ter a verba pública senão a de locupletar aos digníssimos representantes do povo? Isso, no plano mais evidente da rapinagem. Fora dele, há a especulação imobiliária que vai traçando paisagens, adotando perspectivas qual um pintor naturalista e definindo onde cada um vive ou vai viver, aonde cada um anda ou vai andar, onde cada um dorme ou vai dormir. São muitos os problemas com os quais nos depararemos nessa longa caminhada de 5, 6 anos. Vem a calhar um texto barretiano. Lima Barreto (1881-1922), escritor para quem o significado importava mais do que as acrobacias fonéticas ou lingüísticas, publica o texto "Leitura de jornais" um ano antes de sua morte na antiga revista ilustrada Careta. Em 19 de março de 1921, sai o texto irônico que comparava a atitude de alguns brasileiros com a adotada na Argentina no que concerne ao gasto do dinheiro público, quando ainda se vivia uma acirrada disputa entre as capitais dos dois países para saber qual seria a mais moderna e européia. Os tempos eram outros, já os problemas... 


Leitura de Jornais


Afonso Henriques de Lima Barreto em 1919
Não há dúvida alguma que o embelezamento das cidades sobreleva as questões de higiene e de assistência que elas também reclamam. É isto que se tem visto em toda a parte, principalmente nas capitais de tiranos asiáticos, onde se erguem monumentos maravilhosos de mármore e ouro, de ônix e porcelana, de ouro e jaspe, em cidades que não têm água nem esgotos e o grosso da população habita choupanas miseráveis.

Essa regra geral das administrações asiáticas obedece a certo critério de origem divina, em que se estatui que o senhor e os senhores têm direito a tudo; e os restantes, no máximo, a vida, e são obrigados a pagar impostos para gáudio daqueles outros.

Mais ou menos, em obediência a essa regra, foi que se ergueram tantos monumentos célebres no mundo inteiro, desde o “Palácio do Serralho”, em Constantinopla, até o Taj-Mahal, de Agra, na Índia, com a moldura de uma cidade de miseráveis.

Com o advento da democracia nos países de origem europeia, especialmente no nosso, depois da proclamação da república, essa regra asiática tem sido mais ou menos obedecida, com o caráter cenográfico, que nos é próprio.

Ainda há dias, lendo os jornais desta cidade tive ocasião de verificar essa feição característica da nossa mentalidade administrativa.

O excelente O Jornal, nos primeiros dias deste mês, lamentava que a municipalidade ainda não houvesse levado a efeito, a construção de um stadium, no Leblon.

Reproduzia a planta respectiva que a edilidade, com grande menosprezo pelos interesses vitais do povo, tinha atirado ao pó dos arquivos. Lastima-se o redator da notícia assim: “Diante dessas informações perguntamos: Por que se abandonou assim um projeto sob todos os títulos grandioso, para se fazer a concessão de hoje, que tantos comentários vão provocando?”.

Não há dúvida alguma que tal abandono é motivo de lástima a mais profunda, porquanto já temos para realçar semelhantes grandiosos projetos dessa natureza, os magníficos repoussoirs da Favela, do Salgueiro, do Nheco e outros em muitos morros e colinas que são descritos por um jovem jornal desta cidade, O Dia, de 3 do corrente, desta maneira:
Encontram-se extensos aldeamentos de casas construídas com folhas de latas de gasolina, ripas de caixas de batata e caixões de automóveis. (...) Por essas barracas, que seria impossível de qualificar de casebres, porque nelas nenhum homem rico abrigaria o seu cão de estima, cobram-se de 30$ a 50$000 por mês e até mais.
Convém notar que essas maravilhas nada custaram à prefeitura, e, nem ao menos, exigem-lhe o trabalho de cobrar-lhes impostos ou dízimos quaisquer.

São puras criações de iniciativa particular que se mostra assim solícita para abrigar os pobres e dotar a cidade com essas curiosas construções, dignas de Hué ou de São Paulo de Luanda.

Buenos Aires, que não nos deixa dormir, tendo lá cousa semelhante, tratou de acabar com tão pitorescas excrescências. Que fez? Construiu pistas ou arenas de jogos atléticos? Não: construiu casas, conforme informa o último dos jornais citados, que ele descreve desta forma:
Essas casas, construídas com armações de madeira ou ferro, oferecem aos seus habitantes o melhor conforto, pois todas elas, como se pode verificar nos projetos do Senhor Ayerza, dispõem de ótimas acomodações, água corrente, banheiros, salas, luz e ventilação, enfim, tudo o que se torna necessário ao bem-estar dos moradores.
Está se vendo por aí que os nossos vizinhos não têm o espírito olímpico; mas, uma alma cheia de baixas e subalternas preocupações burguesas.

A nossa origem divina, ou melhor: a origem divina dos nossos dirigentes não lhes permite ter dessas cogitações práticas e comuns de casas para desafortunados.

Não seria possível que o sultão de Mossul fosse se preocupar com casas para o seu povo; mas, quando a bexiga irrompe, sabe ele da existência de uma plebe necessitada na sua capital, e, então, manda-a vacinar a toda pressa, sob pena de cortar a cabeça os recalcitrantes, com medo que a difusão da peste venha enfear as sultanas do seu mimo.

São essas as considerações que me vieram ao fazer a leitura, com intervalo de dias, de dous grandes jornais cariocas que já citei.

Por aí, vim a concluir que a nossa administração ainda se guia pela estética urbana dos rajás asiáticos e que, sob este aspecto, ela é absolutamente original nestas américas e talvez nas európicas.

Os seus arquivos, o que faz supor a descoberta do plumitivo do O Jornal, devem regurgitar de planos de prados, coliseus, frontões, boliches, teatros, palácios, etc. etc.

Entretanto, ela não presta atenção nos meios de enfear e emporcalhar mais a Favela, embora os seus propósitos de embelezamento de Copacabana e arredores peçam logicamente, de acordo com a sua doutrina calcutaense, a transformação daquele e outros morros que circundam a cidade, na cousa mais repugnante deste mundo...

A leitura dos jornais é sempre utilíssima, como já disse o outro.
L. B.
Careta 19-03-1921

A grafia de estrangeirismos foi mantida como aparece no original.

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