quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O ceguinho podólatra Glauco Mattoso, um livre-pensador


Já se vão alguns anos desde a primeira vez que li algo escrito por Glauco Mattoso (1951). Suas colunas na revista (posso dizer petista?) Caros Amigos ou seu livro iniciático à poesia marginal da época da Ditadura (O que é poesia marginal), ambos foram lidos, por mim, há pelo menos cinco anos. Faz mais tempo ainda desde a última vez que o vi na TV, no extinto programa Musikaos da claudicante TV Cultura.

Li recentemente muitos sonetos do Glauco Mattoso (pseudônimo que alude ao mesmo tempo à doença congênita glaucoma e ao poeta barroco Gregório de Matos) em seu sítio pessoal, nas páginas que reune parte da obra poética, e em sua coluna no Portal Cronópios.

Além da tara por pés e solas, e sua postura de eterno fudido (em todos os sentidos), ele também se posiciona com relação à política e aos políticos. Dentre outras coisas, é do que tratam os sonetos abaixo:

#17 Sádico [1999]

Legal é ver político morrendo
de câncer, quer na próstata ou no reto,
e, p'ra que meu prazer seja completo,
tenha um tumor na língua como adendo.

Se for ministro, então, não me arrependo
de ser-lhe muito mais que um desafeto,
rogar-lhe morte igual à que um inseto
na mão da molecada vai sofrendo.

Mas o melhor de tudo é o presidente
ser desmoralizado na risada
por quem faz poesia como a gente.

Ele nos fode a cada canetada,
mas eu, usando só o poder da mente,
espeto-lhe o loló com minha espada.


#18 MASOQUISTA [1999]

Político só quer nos ver morrendo
na merda, ao deus-dará, sem voz, sem teto.
Divertem-se inventando outro projeto
de imposto que lhes renda um dividendo.

São tão filhos da puta que só vendo,
capazes de criar até decreto
que obrigue o pobre, o cego, o analfabeto
a dar mais do que vinha recebendo.

Se a coisa continua nesse pé,
acabo transformado no engraxate
dum senador qualquer, dum zé mané.

Vou ser levado, a menos que me mate,
à torpe obrigação de amar chulé,
lamber feito cachorro que não late.


#25 POLÍTICO [1999]

A esquerda quer mudança no regime:
trocar todas as moscas sobre o troço;
mais gente repartindo o mesmo almoço,
p'ra ver se a humanidade se redime.

A situação não quer mexer no time:
o jogo da direita é o mesmo osso,
o mesmo cão, e nada de alvoroço,
mantendo o status quo que nos oprime.

Um cego como eu, politizado,
consciente de não ser tão incapaz
que não possa escolher qual é meu lado;

P'ra mim, desde que seja dum rapaz
o pé pelo qual quero ser pisado,
direito como esquerdo, tanto faz.



O gosto musical do poeta chama a atenção; rockabilly, punk rock e outras vertentes do rock, além do ska fazem parte de suas preferências; as quais compartilho. Há poemas que mencionam (julgam) bandas como Sex Pistols, The Clash, Buzzcocks, Dead Kennedys, Exploited, Ramones, Stiff Little Fingers, Sham 69, Stray Cats, The Macc Lads, The Specials, Toy Dolls e outras tantas. Em vez de ficar no lugar comum da classe letrada, a MPB, o bardo enaltece o rock'n'roll sem frescura.

A preferência musical é apenas uma das facetas dessacralizadoras de Glauco, que já foi chamado de marginal, experimental e maldito; rótulos que prontamente assumiu.


#43 VANGUARDISTA [1999]

Vanguarda é classicismo, e a prova disso
está nos manifestos: em que pese
o mau comportamento, viram tese,
tratados como o texto mais castiço.

Não nego que elas prestam bom serviço,
mostrando algo de novo que se preze.
O mal é quando espalham catequese,
querendo impor que o resto está cediço.

Aqui nem há razão p'ra que me queixe:
Quer seja ou não vanguarda ou velha guarda,
não deixo de vender meu mixo peixe.

Não viso academia, chá nem farda;
só peço a cada membro que me deixe
lamber seu pé com minha língua barda...


#44 MALDITO [1999]

O veio subterrâneo e fescenino
do qual Zé Paulo Paes foi bandeirante
tem repertório altíssimo e abundante
que vai de Marcial até Aretino.

Na língua portuguesa já declino
três nomes do listão mais importante:
Bocage, Lagartixa e o infamante
Gregório, véi de guerra, esse menino!

Nem penso em me incluir nessa caterva,
até porque meu vício é bem menor.
Quem for mais perspicaz na certa observa:

Aquilo que o Mattoso faz melhor
é só o que a sorte cega lhe reserva:
tirar leite de pé, lamber suor.


#45 MARGINAL [1999]

Assim como o menor abandonado
converte-se bem cedo no infrator,
também na poesia há muito autor
rebelde só porque ficou de lado.

Os jovens querem dar o seu recado
do modo mais avesso e transgressor,
até chegar num ponto em que o louvor
consagra todo o coro amotinado.

O fato é que o legítimo indigente
é quem fica isolado na conversa
enquanto as outras partes fazem frente.

Me sinto assim. A turma já dispersa
ao ver que meu assunto é o pé, somente.
O tema é marginal, e vice-versa.


Notem que no soneto “Maldito”, o sujeito-lírico se insere numa tradição que conta com Aretino, Marcial, Gregório de Matos, Bocage e Lagartixa (Laurindo Rabelo). Essa tradição seria o veio subterrâneo da literatura, a literatura fescenina.

As informações abaixo, sobre o poeta Mattoso e sua arte, foram retiradas do já mencionado sítio pessoal.

Glauco Mattoso é poeta, ficcionista, ensaísta e articulista em diversas mídias. Pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva (paulistano de 1951), o nome artístico trocadilha com "glaucomatoso" (portador de glaucoma, doença congênita que lhe acarretou perda progressiva da visão, até a cegueira total em 1995), além de aludir a Gregório de Matos, de quem é herdeiro na sátira política e na crítica de costumes.

Após cursar biblioteconomia (na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, bacharelando-se em 1972) e letras vernáculas (na USP, sem concluir), ainda nos anos 1970 participou, entre os chamados "poetas marginais", da resistência cultural à ditadura militar, época em que, residindo temporariamente no Rio, editou o fanzine poético-panfletário "Jornal Dobrabil" (trocadilho com o "Jornal do Brasil" e com o formato dobrável do folheto satírico) e começou a colaborar em diversos órgãos da imprensa alternativa, como "Lampião" (tablóide gay) e "Pasquim" (tablóide humorístico), além de periódicos literários como o "Suplemento da Tribuna" e as revistas "Escrita", "Inéditos" e "Ficção".

Durante a década de 1980 e o início dos anos 1990 continuou militando no periodismo contracultural, desde a HQ (gibis "Chiclete com Banana", "Tralha", "Mil Perigos" e outros, mas não deve ser confundido com o cartunista Glauco Villas Boas) até a música (revistas "Somtrês", "Top Rock"), além de colaborar na grande imprensa (crítica literária no "Jornal da Tarde", ensaios na "Status" e na "Around"), e publicou vários volumes de poesia e prosa.

Na década de 1990, com a perda da visão, abandonou a criação de cunho gráfico (poesia concreta, quadrinhos) para dedicar-se à letra de música e à produção fonográfica, associado ao selo independente Rotten Records.

Com o advento da internet e da computação sonora, voltou, na virada do século, a produzir poesia escrita e textos virtuais, seja em livros, seja em seu sítio pessoal ou em diversas revistas eletrônicas ("A Arte da Palavra", "Blocos On Line", "Fraude", "Velotrol", "Capitu", "Cronópios", "GLX") e impressas ("Caros Amigos", "Outracoisa", "G Magazine", "Discutindo Literatura"). Jamais deixou, entretanto, de explorar temas polêmicos, transgressivos ou politicamente incorretos (violência, repugnância, humilhação, discriminação) que lhe alimentam a reputação de "poeta maldito" e lhe inscrevem o nome na linhagem dos autores fesceninos e submundanos, como Bocage, Aretino, Apollinaire, Sade ou Genet.

Em colaboração com o professor Jorge Schwartz (da USP) traduziu a obra inaugural de Jorge Luis Borges, trabalho que lhes valeu um prêmio Jabuti em 1999. Nesse terreno bilíngüe GM tem-se dedicado a outros autores latino-americanos, como Salvador Novo e Severo Sarduy, e tem sido traduzido por colegas argentinos, mexicanos e chilenos.

Em vídeo, GM foi entrevistado ou convidado, entre outros, dos programas "Metrópolis", "Vitrine", "Fanzine", "Provocações", "Entrelinhas", "Letra Livre", "Almanaque Educação", "Manos e Minas", "Matéria Pública" e "Musikaos" (TV Cultura), "Sem Frescura" e "Palavrão" (Canal Brasil), "Circular" e "Saca-Rolha" (Rede 21), "Todo seu" (TV Gazeta), "Saia Justa" (Rede Mulher), "Literatura" (redes SENAC e Educativa) e "Jogo de Idéias" (Itaú Cultural/TV-PUC).

Segundo Pedro Ulysses Campos, "A poesia de Glauco Mattoso pode ser dividida, cronologica e formalmente, em duas fases distintas: a primeira seria chamada de FASE VISUAL, enquanto o poeta praticava um experimentalismo paródico de diversas tendências contemporâneas, desde o modernismo até o underground, passando, principalmente, pelo concretismo, o que privilegiava o aspecto gráfico do poema; a segunda fase seria chamada de FASE CEGA, quando o autor, já privado da visão, abandona os processos artesanais, tais como o concretismo dactilográfico, e passa a compor sonetos e glosas, onde o rigor da métrica, da rima e do ritmo funciona como alicerce mnemônico para uma releitura dos velhos temas mattosianos (a fealdade, a sujidade, a maldade, o vício, o trauma, o estigma), reaproveitando técnicas barrocas e concretistas (paronomásia, aliteração, eufonia e cacofonia dos ecos verbais) de mistura com o calão e o coloquialismo que sempre caracterizaram o estilo híbrido do autor. A fase visual vai da década de 1970 até o final dos anos 1980; a fase cega abre-se em 1999, com a publicação dos primeiros livros de sonetos."


Para encerrar, cabe aqui informar que a partir de Janeiro de 2009, o autor tem escrito conforme as normas ortográficas de dois séculos atrás. Para ler seus textos escritos desta forma, basta acessar sua coluna no Portal Cronópios e seus últimos sonetos.

Fiquem com mais dois sonetos do ceguinho.

#190 REDUNDANTE [1999]

Pediram-me um escândalo, e é p'ra já.
Malversação de fundos? Nada disso.
O seio da modelo, que é postiço,
também já não excita a língua má.

A droga nas escolas? Ninguém dá
a mínima importância ao desserviço.
Seqüestro de empresário? Algum sumiço?
Remédio adulterado? Quá! Quá! Quá!

A fraude eleitoral virou rotina.
As contas no exterior não causam pasmo.
Ninguém estranha o cheiro da latrina.

Até Matusalém já tem orgasmo!
Só resta a comentar, em cada esquina,
que o cego é chupa-rola... Um pleonasmo!


#2349 PARA UM IMAGINÁRIO MORTUÁRIO (III) [16/3/2008]

E do Municipal? Muito se narra,
mas esta me contaram que é verdade.
O prédio, certa noite, um punk invade,
disposto a ver fantasma até na marra!

Silêncio. Tudo escuro. A quem por farra
entrara no teatro, persuade
a mágica atmosfera de vaidade
à qual o artista, em vida, em vão se agarra.

O punk, então, no palco vê que o Mário,
o Oswaldo e os outros foram o que, agora,
quer ele ser: rebelde e libertário...

Mas cada modernista que ali chora
a efêmera inscrição no calendário
lamenta não ser novo como outrora...

NOTA: Refere-se, o eu-lírico, à Mário de Andrade e Oswald de Andrade, nomes centrais do Movimento Modernista, eternizado na Semana de 1922.

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